Há dois posts atrás eu falei sobre o fato deu estar fazendo uma leitura muito pessimista da realidade nos últimos posts aqui no blog e daí fiz uma postagem falando sobre avanços de setores mais progressistas e de figuras públicas que só poderiam existir, ocupando os papeis que ocupam e com as bandeiras que carregam, nos dias atuais.
Eis que ontem, zapeando no youtube encontrei na integra um episódio inteiro do programa Márcia de 1997. O programa de auditório apresentado pela apresentadora Márcia Goldshmidt entre os anos de 1997 e 1998 no SBT, seguia o estilo Casos de Família, era a época em que os programas popularescos explodiam e dramas da vida comum da população mais vulnerável socialmente eram explorados sem nenhuma cerimônia. Não havia nenhum pudor ou constrangimento em colocar nas câmeras qualquer conteúdo pela audiência. Se hj no Casos de Família quando há uma briga física entre os convidados a imagem corta pra plateia, lá tinha zoom.
O episódio em questão tratava de crianças perseguidas na escola, de cara já chama a atenção que a expressão "bullying" provavelmente não existia, ou pelo menos não era popular, aliás parece que nada existia, não havia conselho tutelar, não havia nenhum debate sobre racismo, homofobia, gordofobia nem bosta nenhuma, só havia a barbárie mesmo, papo de lei da selva. Crianças tratavam de temas ligados a preconceitos graves ouvindo a opinião de idosas da plateia.
A primeira convidada era uma menina de 11 anos que era chamada de macaco por um coleguinha loiro na escola. Os comentários da plateia eram inacreditáveis, Márcia já falava de racismo, mas em todos os casos segurava muito uma narrativa que esse tipo de situação era parte constituinte da vida escolar, que as vítimas não deveriam se importar tanto assim e que os algozes era mais fortes por resistir melhor a pressões. Neste caso a coisa ainda escalona quando a mãe do menino entra no palco por que era supervisora escolar do colégio. A cereja do bolo é a interpretação feita pela apresentadora que na verdade o menino fazia isso por que gostava da garota, que isso guardava uma feto contido, tese amplamente defendida pela plateia, inclusive pela mãe da menina que estava na ocasião. O rapazinho negava veementemente e dizia que chamava de macaca por que ela era preta mesma, Márcia advogava dizendo que ela era linda e nem tão preta assim.
No segundo caso dois garotos perseguiam um outro afeminado, dizendo que não gostavam do jeito dele e que ele era viado, quando o garoto falou que falavam isso e ele não era a plateia caia na gargalhada. O menino contava ainda que os meninos colavam papel nas costas dele dizendo que ele gostava de dar o c*, e ele n deveria ter nem 14 anos. Quando ele fala que chama a ele de "Vera Verão" (personagem vivido por Jorge Lafont anos na televisão, negro, gay e afeminado), Márcia diz que pelo menos comparavam com um famoso. me lembrei de como sofria com personagens gays na televisão de todas as vezes que eu rezava pedindo a Deus pra que determinadas novelas acabassem logo por que não suportava as brincadeiras que me chamavam pelos nomes daqueles personagens na escola.
No terceiro caso a mãe foi com um menino de 06 anos (pasmem) que gostava muito de comer hambúrguer e batata frita e que por ser gordo os colegas colocavam apelidos como gorducho, elefante sem rabo, baleia fora d'água e baleia assassina. A mãe diz que ele até já queria sair da escola e que um colega já até bateu nele.
No último caso dois garotos que ficavam perturbando um ao outro e soava meio que ok perto dos casos absurdos, mesmo eles falando de "brincadeira" violentas entre si.
No fim do programa a coordenadora do programa de saúde de adolescente da secretaria da escola foi coroar o festival de horrores. No primeiro caso ela dizia que o menino deve buscar outras formas de expressar seu afeto e que a vítima de racismo tem que aprender que no mundo as mulheres são vítimas de violência e ela precisa aprender a se defender melhor, já o menino tem que ficar ligado que um dia alguém pode responder com violência. No caso de homofobia ela fala sobre a pluralidade o mundo, mas que a vítima pode ter um jeito que incomoda e que pode deixar ele triste, logo ofereceu tratamento psicológico pra ele e pros meninos, caso eles queiram. No terceiro caso ela começa com "ser gordo não é fácil", aponta que acha errado os apelidos, mas que ele também precisa emagrecer e parar de comer tanto hambúrguer, tanta batata, tanto refrigerante e que a hora boa pra tentar emagrecer é agora.
Gente.. Na boa.. Um festival de horrores... Hor-ro-res... Dia desses a atriz Eliane Giardino reproduzia um discurso que setores mais progressistas da sociedade já vem falando a muito tempo. O mundo não ficou mais chato, ele já era muito chato pra pessoas que se calavam e tratavam com normalidade as opressões que eram submetidas. O programa, além de todo o absurdo e exposição de crianças de todas as formas, trazia uma dinâmica de culpabilização das vítimas, completamente legitimada por uma profissional da área da saúde mental no canal aberto. Todos os episódios de opressão eram tratado como naturais da escola, da vida infantil, do mundo... As crianças eram a todo tempo convidadas a repensarem seu hábitos pra lidar com essa dinâmica por que elas pareciam impassíveis de seremm mudadas, é tudo assim mesmo.
Quando comecei a escrever esse blog foi um período de virada em que debatíamos muitos na blogosfera sobre o mundo não ter ficado pior quando as pessoas passaram a ter que se preocupar mais com o que falam e sobre como isso chega na outra ponta. De um jeito ou de outro, no final da década de 2000, início da de 10 , era bem comum blogs que eu gostava e de pessoas que traziam debates importantes, terem falas extremamente homofóbicas e eu e mais dois colegas comumente acionávamos uns aos outros pra podermos defender uma ideia sem estar sozinhos, sem sermos atacados por todos com o discurso do mimimi e isso mais de dez anos depois do famigerado programa da Márcia.
Lamento em informar pra quem acha natural os episódios narrados, mas a única coisa mais chata do mundo é a insistência de determinados setores de quererem manterem a realidade como ela era as custas o sofrimento do outro.
Pra quem tiver interesse, segue o episódio, que vale a pena ser visto e debatido sempre como retrato de um mundo que não queremos mais, a violência ainda existe, mas não ter uma chancela de normalidade por parte da sociedade muda tudo. Não gosto de comparar o ruim com o pior ainda, temos muito a avançar e n estamos nem perto do razoável, mas pra mim que vinha numa onda de postagens tão pessimista foi importante lembrar do mundo tão pior que eu cresci, tudo mudou tanto que a gente até se esquece do tamanho do absurdo que era antes.
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