30.9.24

Brigitte Vasaloo and me


Certa vez em uma entrevista Clarice Linspector falou sobre o fato de que não escrevia na esperança de que algo se alterasse, pq no fundo nada se altera e aí ela fecha dizendo "agente quer desabrochar de um modo ou de outro". Eu poderia citar diversos pensadores, de Paulo Freire a Sócrates, que vão defender a premissa que o processo de aprendizagem não tem a ver apenas sobre como aquilo está sendo passado, mas sobre como a minha experiência empírica vai me fazer absorver aquilo. Eu lembro que quando li Regina Navarro Lins fiquei extasiado ao me reconhecer no conceito de poliamor, mas a bem da verdade é que aquilo já estava muito claro pra mim, Regina trouxe complexidade, estabeleceu fluxos, relações de causa e efeito, lançou luz sobre corredores escuros e me espantou fantasmas, mas eu já sabia. Talvez você que esteja lendo suspeite que possa ser uma arrogância da minha parte ou a tentativa de querer passar uma imagem de "sabichão", mas a maior prova do que estou falando tá aqui nesse blog mesmo. Conheci o trabalho de Regina em 2013 quando li seu primeiro livro, mas em fevereiro de 2012 fiz um post aqui intitulado "conselhos para um gay iniciante", que dentre outras coisas escrevo: 

"Tb não me caia na esparrela de achar que um dia vc vai encontrar o homem certo e ai vc vai desejar apenas ele... Isso é uma grande tolice... Continuará desejando tantos qtos parecerem interessantes pra vc... Talvez vc entre numa relação onde consiga dar vazão a isso (e eu recomendo isso mesmo, desde que haja maturidade pra entender o quão seria é uma relação ainda que aberta)... Mas talvez não, o que tb não tem problema, faça o que suporta... Em todo caso tente ser honesto dentro daquilo que vc se propôs... (mais um gole d’água) ... As vezes vc não vai conseguir... Não precisa se matar por isso, só tente não fazer disso um hábito... Um minuto.. Preciso encher meu copo!!!"

 Eu já sabia, mas de maneira alguma diminuo a importância das contribuições de Regina pro meu autoconhecimento. Onze anos depois de conhecer ela conheci o trabalho de Brigite Vasaloo autora do livro "O Desafio Poliamoroso". Quem me apresentou foi um boy que eu fiquei alguma vezes numa viagem que fiz a Brasília (que vou chamar aqui de Poeta). Ele me recomendou o livro, mas acima de tudo ele trazia um debate muito sólido sobre poliamor, com percepções muito específicas e que estava muito calcado nas suas vivências, mas também na sua leitura/identificação com Vasaloo, o que me deixou tão curioso pra ler o livro que acabei comprando ainda quando estava lá. Eu me encantei muito pela leitura de mundo que o Poeta trazia, não só pq ele era lindo, generoso, inteligente etc etc etc... Mas pq ele também acendeu holofotes em outros corredores escuros que foram se criando com minha vivência com o poliamor em todos esses anos. Você deve está se perguntando o que de tão novo ele e Vasaloo traziam pra mim. 

Pois bem, o Poeta dizia que o que mais pegou ele no livro não foi as percepções dela da monogamia/poligamia, mas sobre como uma série de lógicas que são formadas e formadoras da monogamia influenciam nas relações não monogâmicas, fazendo com que a autora questionasse uma série de conduções de relações poliamorosas. O que pegava nesse livro não era sobre eles, era sobre nós. 

O Poeta trazia uma percepção das relações poliamoristas numa perspectiva de rede de apoio, tem um trecho do livro em que Brigitte fala sobre como as pessoas se questionam sobre questões frívolas da estrutura das relações não monogâmicas preocupando-se com coisas banais como quem vai sentar do lado de quem na cadeira do restaurante, mas sem ter nenhum questionamento sobre quem vai ser o acompanhante no hospital quando um adoecer. Brigitte parte de aspectos muito estruturantes para poder se embasar, reflete, por exemplo, sobre como o exclusivismo (a lógica que vc deve "pertencer" exclusivamente a um individuo) se constrói numa ideia muito mais ampla de que aquilo que não pertence a todos tem valor e isso é uma pedra angular do capital. A coisa deixa de ser valorizada pelo que efetivamente trás de benefício para o individuo, mas sobre o quanto os demais não podem ter, sobre o quão exclusivo aquilo é, um bom exemplo disso é o mercado de pedras preciosas. Diamante só vale o que vale pq é raro e a gente resolveu valorizar por isso, não é pelo benefício que ele pode trazer pra você. Por tanto, partindo do pré suposto, um parceiro que tem um sexo acessível para outros indivíduos, não tem nada de raro pra me entregar, não é exclusivo. Essa e muitas outras coisas me pegaram bastante, mas a coisa da rede de apoio me pegou mais, talvez por que eu tivesse vivido algo muito recentemente que vinha bem de encontro com o debate. 

Um ano antes disso acontecer o Calopsita (meu marido) conheceu um boy e ele começou a ficar muito próximo dele (vou chama-lo aqui de Sr Centro do Mundo, ou só Centro). Logo que ele me apresentou Centro me encantei, pq ele era um querido, um gostoso, bom demais de cama, valia cada segundo. Eles dois tinham uma puta conexão e eu começava a me entender com Centro. Nós passamos a virar um trio e eu meio que passei a tentar mediar um pouco a relação com o marido dele, pq sim ele era casado e esse debate do poliamor era bem rudimentar para eles. Identifico que muito da nossa aproximação com o marido dele foi em função exatamente dessa lógica da rede de apoio. Centro tinha graves questões de saúde mental, o que gerava problemas sérios, crises graves e o marido dele não tinha muito com quem contar, entendia que toda essa galera com quem ele tinha apenas relações fundamentadas em sexo, não chegavam junto pra nada nos momentos de fragilidade dele e foi nessa brecha que a gente entrou, foi entendendo que nós éramos apoio que ele começou a abrir essa porta. Daí que volta e meia ele ficava preocupado, mandava msg pra saber se Centro estava lá em casa e ficava tranquilo de saber que estava. Também houveram momentos de crise de Centro que ele nos ligou e nós prontamente corremos pra lá pra ajudar. Tudo corria bem quando em maio de 2023 ele nos pediu em namoro e nós aceitamos de pronto. A questão é que com muito pouco tempo as coisas entre eu e ele passaram a ficar mais nebulosas, eu viajava muito a trabalho, estava mais fora do que dentro, isso gerou uma aproximação forte entre ele e o meu marido, mas comigo além de haver menos afinidades, havia um incomodo meu em ter que estar sempre em volta dos problemas dele quando eu estava no meu pouco descanso em casa. Pq na minha leitura, quando estávamos com ele, tudo era sobre ele, sobre como o humor dele estava, sobre o quanto ele tinha que ser atendido para não desestabilizar e sobre o quanto toda precaução do mundo muitas vezes não era suficiente. Na contrapartida meu marido foi se sedimentando ainda mais como uma rede de apoio importante pra ele. Cada vez mais limitado, deixando de fazer coisas em função da sua saúde mental e precisando de companhia pra uma série de  coisas, Centro demandava e meu marido sempre estava lá pra segurar sua mão. Num determinado momento o marido dele deixou de trabalhar e dali pra frente ele passou a ter mais dificuldade de administrar esse tempo e se antes ele vivia lá em casa, ele começou a diminuir bem esse ritmo, mesmo morando há poucas quadras. Calopsita sentiu a falta, eu senti alívio! Até que um belo dia o meu marido teve uma apendicite, quem já teve sabe como tudo acontece mega rápido nesses casos. Numa sexta ele sentiu a dor, no sábado operou, domingo estava de alta, porém foi um período bem complicado, por que eu continuei trabalhando, tinha todos os cuidados de casa e ainda precisava ajuda-lo em coisas mínimas no pós operatório. A situação começou numa sexta, mas só na segunda, diante do total silêncio do Senhor Centro do Mundo que fui perguntar pro meu marido se ele soube do ocorrido e pasmem, ele contou que estava indo pro hospital sexta passando mal e o boy não perguntou mais nada depois. A situação gerou uma crise entre os dois, naquela altura dos acontecimentos eu já estava bem afastado dele, mas não aponto de deixar de falar. Pelo whatsapp o Senhor Cntro do Mundo reverteu a situação falando: "ah desculpa, eu não to bem e blá blá blá" e para a surpresa de zero pessoas o assunto começou a ser sobre ele novamente. No dia que ele foi lá em casa conversar com Calopsita, Centro mal me olhava, desconfio inclusive que ele achava que eu manipulei a narrativa, mas também não me preocupei em falar nada pq não tinha mais nenhuma intenção de reverter absolutamente nada com ele e achava que aquilo era sobre eles, porém a conversa com eles também  não foi pra lugar nenhum, pq claro que as questões de saúde mental também justificavam uma inabilidade social e uma incapacidade de discutir problemas. Dali pra frente foi ladeira morro a baixo. A conversa nunca veio, ele já não ia lá em casa nunca, pouco tempo depois separou do marido e foi pra casa da mãe, nós nos aproximamos, ajudamos inclusive na mudança, mas nenhum diálogo com ele... Calopsita começou a namorar outro cara, eu comecei a sair com outro garoto, mas nenhum diálogo com ele... A gente começou a se reaproximar numa lógica de amizade (embora a gente ainda se cumprimentasse se beijando), mas nenhum diálogo com ele... Cheguei até tentar transar um dia, mas foi total torta de climão que se sustentava num silêncio abissal, nenhum som... Nada. Quando recebemos a notícia que precisavamos mudar de cidade, começamos a viver esse luto, organizar a mudança e falamos com ele em torno de 3 semanas antes, ele teve uma relação meio que "ok" e nunca mais nos falamos. Meu marido hoje diz que nem gosta de ver as coisas dele no instagram e eu entendo, por que ele mergulhou fundo e terminou no vazio. 

O Poeta e Brigitte falavam comigo sobre como tantas vezes, numa perspectiva poliamorista, as pessoas criavam relações tão frágeis que muitas vezes ela não tinham se quer com o que terminar e isso me bateu muito. Fiquei pensando não só no que tinha acontecido com o Senhor Centro do Mundo, mas todas as zilhares de vezes que eu ocupei esse lugar. O meu autoconhecimento enquanto um homem poliamorista mudou bastante com o tempo, aliás não só o meu autoconhecimento, mas a minha dinâmica mesmo. Durante muito tempo me senti muito desconfortável com a ideia de que meu marido era obrigado a se adaptar o tempo inteiro as minhas demandas e que pra mim nunca parecia estar bom, é muito recente o meu entendimento de que na verdade relação aberta não é poliamor, que ela tem uma dinâmica muito parecida com a da monogamia e que não é que ele tivesse que se adaptar sempre, eu que vivi uma frankenstein de poliamor, fazendo uma série de pactuações que não me atendiam por que de fato não iam de encontro ao que funcionava pra mim. Todavia sinto que fim de tudo gerou em mim um módus operantes que fez com que por muitas vezes as pessoas com quem eu me relacionava ocupassem lugares quase que de amantes, eram como parênteses na minha história. Certa vez fiquei com um menino lindo, encantador e negro. De pouco a pouco ele foi se esquivando  de maneira que eu não conseguia se quer conversar com ele, mas a verdade é que eu já tinha entendido tudo e já que ele não me permitia aproximação escrevi um e-mail me desculpando e falando sobre as cicatrizes que um homem preto tantas vezes carrega pelos sub lugares que ocupa e que eu me achava o ás da modernidade, mas reproduzia padrões que historicamente colocava pessoas pretas como uma relação furtiva a ser escondida. Mais uma vez repito, eu já tinha debate sobre o fato de que muitas vezes o sujeito entra numa relação poliamorista como se tivesse entrando numa "não relação", as vezes a ponto de dizer que o fazia buscando "leveza", ignorando toda complexidade existente na dinâmica da manutenção de relações livres saudáveis, mas foi com o Poeta e com Vasaloo que parei para prestar atenção em pequenos nuances que eu reproduzia e que me colocavam no exato lugar que criticava. 

As novas reflexões me levaram a repensar uma outra relação, com um um boy que conheci numa viagem para Salvador, vivemos um romance meteórico e ao sair de lá ele foi taxativo em dizer que ele fazia seu destino e que não precisava haver um fim em função de uma distância geográfica. O baianinho é um querido com quem tenho muitas identificações de visão de mundo além de forte conexão sexual, mas um estilo de vida completamente distante do meu. Não se tratava apenas da distância geográfica, mas de muitas outras distâncias e todas as vezes que eu tentei apontar pra esse fato, tentei refletir com ele que por mais que a gente tivesse muito carinho um pelo outro talvez realmente não houvesse liga pra segurar uma relação ele era completamente relutante por questões que identifico serem muito dele, tinha muito a ver com o quão ele não se sente confortável em ocupar alguns dos lugares que nos distancia então talvez ele quisesse forçar uma narrativa onde coubesse sim, uma narrativa em que nem era tão distante assim ou pelo menos poderia deixar de ser, mas a verdade é que era e a coisa foi se esvaindo em silêncios e mais distância... Quando eu conheci a Vasaloo e comecei a pensar sobre essas coisas, tentei abordar, mas acho que talvez não tenha sido suficientemente posturado.

Quando estava deixando Rio das Ostras eu estava saindo com um garoto, pra esse deixei bem claro desde no início que não havia uma relação, ali não só eu já estava refletindo sobre tudo isso, como já sabia da eminência da mudança, mas olhando pra trás fico me perguntando até que ponto talvez eu não tenha dado sinais que iam em oposição a o que estava discursando pra depois colocar tudo na conta de uma interpretação equivocada dele. O Senhor Centro do Mundo foi uma ótima ilustração do que eu não queria e "o desafio poliamoroso" foi um passo importante para minha autopercepção e do quanto em muitos momentos eu me aproveito dos equívocos que as pessoas cometem quando pensam em poliamor para não enfrentar coisas que talvez não tenha coragem de enfrentar.

 Eu sou um homem poliamorista. Parceiros múltiplos sexuais são importante pra mim, afetos são importantes pra mim, cuidados são importantes pra mim, coerência é importante pra mim. Brigitte Vasaloo me fez olhar com atenção pra uma série de coisas importantes, mas tantas vezes negligenciadas por mim.

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