6.10.24

Sobreviventes




 É assim que me classifico, um sobrevivente do terror que foram os anos do governo Bolsonaro no poder. Eu resolvi fazer esse post depois que um antigo leitor, da época que esse blog era mais ativo, comentar recentemente sobre o fato deu me identificar com a personagem Bree Van de Kamp a ponto de usar o sobrenome no meu pseudônimo por anos  aqui no blog, sendo ela uma personagem armamentista e conservadora (situação que prontamente respondi no próprio post - três abaixo, caso alguém tenha interesse) . Ele falou sobre o vortex que rolou no Brasil nos últimos anos e que ficava se questionando essa minha identificação diante deste cenário.

Daí me dei conta que voltar aqui sem falar sobre como vivi esses acontecimentos era meio que me silenciar sobre algo que realmente nos engoliu e transformou tudo, a realidade tá muito diferente do que era  em 2009, quando esse blog nasceu.  É curioso que alguns analistas entendem que a gênesis da história contemporânea Brasileira foi o "vem pra rua" em 2013, época que esse blog era ativo e eu fui pra rua e comentei aqui. Outros dizem que foi o golpe em 2016, época que tentei retornar com o blog e também falei sobre isso bem aqui. Todavia em ambos os momentos acho que eu tinha um visão quase inocente da realidade dado os acontecimentos posteriores, por que verdade seja dita se meu medo em 2016 era Marina Silva como uma opção eu realmente não fazia ideia de como as coisas poderiam escalonar.

Mas voltando a 2013, me pergunto se realmente ali foi onde tudo começou, talvez possamos dizer que sim, pq aquela situação marcava um descontentamento generalizado com a  classe política e na sequência abrimos um era de outsiders que vai de Alexandre Frota a Pablo Marçal. Em 2014  a derrota de Aécio e a desconfiança das eleições com o pedido pra recontar os votos foi outro tiro, que hoje Aécio já assume que não achava que tinha perdido e fez pra perturbar o PT, foi uma trollada, fazendo humor com o processo democrático.

2016 foi o golpe de misericórdia, tudo foi horrível. Há quem diga que Dilma é alguém que de fato desperta sentimentos fortes, sem meio termo, ou se ama ou se odeia e eu tô no time que ama. Me emociono mesmo, choro quando o tema vai a fundo. A ex guerrilheira, que virou presidente, saiu num golpe orquestrado e praticamente público. A carta do Temer o áudio do Juncá falando em estancar a sangria da lava jato num acordão com imprensa, supremo e tudo... Aquele circo patético com os motivos mais bizarros do mundo que foi o impetchment de Dilma e ela naquele plenário diante dos lobos, FIRME, ALTIVA... Falando que a história cobrará sobre o golpe, falando o quão classista, misógino e racista era aquele golpe. Ela sabia o quanto 12 anos de governo PT fortaleceu minorias, emancipou pessoas e como isso era insuportável pros verdadeiros donos do poder desse pais. Dilma enfrentou os torturadores da ditadura, Dilma enfrentou os abutres da democracia, Dilma é uma gigante a quem o povo brasileiro deveria ter muita gratidão.

Dilma cai e sobe Temer, sua foto com o um grupo de ministros homens brancos de meia idade já apontava para um retorno do completo controle nas mãos de quem temia perder o controle. A reforma trabalhista deixava isso ainda claro, mas lógico que eles sabiam que dois anos era nada e que Lula ia voltar gigante. Lula é preso... Surge Bolsonaro.

Eu juro que não acreditei, meu maior medo era um retorno tucano na figura do Alckimin. Eu sabia quem era Bolsonaro por ser essa figura bizarra dos programas popularescos desde meado da década. Que estava nas arenas da Luciana Gimenez que adorava propor "debates" entre pastores da universal e travestis da lapa, sabia do Bolsonaro do CQC... Não, não era possível! Eu fui inocente, Trump já tinha se tornado o trampolim da extrema direita mundo a fora, a virada da extrema direita já estava acontecendo, mas eu não acreditava.

Foi no fim do primeiro turno que a ficha caiu, eu chorei muito, muito mesmo.. Eu que sempre dizia pro meu marido "relaxa, vai ficar tudo bem", me senti vulnerável. As semanas anteriores ao segundo turno a escalada da violência foi bizarra. Num dia as mulheres estavam nas ruas gritando "ele não", no outro a recomendação era não andarem sozinhas com o adesivo na rua. Diversos amigos meus relataram agressão, gente que nem era militante, eu mesmo uma noite antes de ir votar indo num bar comprar refrigerante ouvi alguns homens falando que Bolsonaro ia acabar com essa pouca vergonha desse monte de viados, até hj não sei se era pra mim. Nessa época tbm virilizou o vídeo no metrô de São Paulo lotado, no horário do rush com vários homens batendo no teto e gritando "Bolsonaro vai matar viado" .

Eu só podia contar com o "ninguém solta a mão de ninguém", mas com um sentimento que ninguém nem nunca segurou minha mão direito. O mundo gay em que as pessoas se bloqueiam por achar seu interlocutor feio era com quem eu podia contar.  

Damaris Alves, Ricardo Salles, Olavo de Carvalho... O desmonte estava armado, políticas públicas desmontadas, ataque as instituições, imprensa, ciência.. A democracia sendo golpeada dia após dia. Daí veio o Covid... Esquece! O espetáculo do desgoverno, a cloroquina, o negacionismo no talo... Os números de mortos, a vacina negligenciada, a morte em todo os lugares, Paulo Gustavo... O cheiro da morte. 

Quando Lula voltou em qualquer lugar a esperança reacendeu e nós precisávamos disso, mas o cenário é a treva. A extrema direita se espalha, não acabou. Pablo Marçal é a prova de que não a acabou, que Bolsonaro pode até morrer, mas temos uma sociedade contaminada pelo o ódio e a ignorância. A crise não é só política e econômica, a crise é humanitária! Marçal um risco em SP, Trump nos EUA, Le Pen na França.. Milei levou na Argentina... Na Alemanha e na Itália os descendentes de grandes figuras dos partidos nazista e fascistas retornam pra cena. 

Diante disso tudo eu penso que eu e algumas gerações depois da minha fomos criados num período que parecia que a civilização tinha chegado num porto de força e estruturação que não havia mais espaço pra que grandes absurdos como o holocausto acontecessem novamente. Nós andamos pra trás, questionamos mais vacinas, relativizamos a democracia, passamos a questionar marcos civilizatórios que nos permitiram existirmos enquanto coletividade e quando falo nós destaco especialmente a juventude que representa o futuro.

Nada tá dado, nada nunca esteve dado na verdade e se em algum momento lá na frente alguém achar isso precisamos ser memória viva desses dias pra fazer as próximas gerações se manterem atentas e fortes, por que nunca vai ter fim.