25.10.09

Ponto de Vista


Devia ser aproximadamente 09:15 da manhã, quando Adelaide adentrou afobada na lanchonete, estava ansiosa e um tanto quanto espantada, tudo parecia esquisito e pra completar Maristela já estava lá, com um semblante bastante preocupado, molhando um biscoito de champagne numa xícara de caputino . Realmente estava tudo muito estranho, o local do encontro, o horário, a pontualidade de Maristela e até o próprio encontro em si.


As duas irmãs se davam bem, mas o abismo que separava os dois universos não permitia grandes contatos. Maristela era libertina e libertaria... Homossexual assumida desde os 15 anos escandalizou a família e a cidadezinha de onde vieram. Tinha varias tatuagens pelo corpo, pearcings, cortava o cabelo curto e pintava de vermelho. Militante do movimento gay, cronista de uma revista e mais dois sites voltados para o público GLS,autora de um livro de poesias, Maristela era o próprio retrato da subversão. Volta e meia estava envolvida em algum escândalo com bebedeiras e noitadas, era uma boemia de primeira, quase sempre curava sua ressaca física e moral com muito café, cigarro e um vinil da Angela Rô rô que seu primeiro amor deu em 1992. Vez ou outra era obrigada a apelar pra irmã e pro cunhado (fato que ela odiava) por algum problema financeiro e era obrigada tb a ouvir muito mais do que de fato gostaria, eles funcionavam como uma espécie de FMI, emprestavam o dinheiro mas em troca faziam exigências que apontava o desejo de assumir o comando de sua vida, geralmente havia muito promessa mas pouco sucesso. Se Maristela era uma incendiaria, Adelaide muito pelo contrario, nasceu para apagar o fogo. Dona de casa, casada com um homem muito mais velho, mãe de um casal de filhos ia religiosamente todos os domingos a missa e todos os dias as seis da manhã passava a farda do marido ouvindo "as melhores do rei". O marido um militar simpático, apesar de carrancudo, era extremamente metódico, gostava de tudo no lugar. Ordem, disciplina e responsabilidade eram suas palavras favoritas. Só votava no PSDB, sempre repetia que tempo bom, era o tempo da ditadura. Adelaide estava sempre no meio, assim foi a vida inteira, ela sempre tentando mediar. Depois da morte dos pais na condição de irmã mais velha se sentia na obrigação de zelar pela irmã, para terror do marido que gostava de ver a cunhada bem longe de sua linda e feliz família. Adelaide sempre repetia que tudo é uma questão de ponto de vista, frase que Maristela odiava, ela dizia que a irmã se utilizava deste jargão para se enganar da condição miserável em que vivia. Adelaide não achava o marido grosso e autoritário, apenas um homem de uma vida sofrida e criação dura, mas com um excelente coração; a irmã não era nenhuma louca pervertida, apenas uma menina desajuizada; e ela estava muito longe de ser submissa e sem vida própria, era apenas uma mulher que optou por constituir família e cuidar do marido e dos filhos.


Adelaide sentou na cadeira e já começou a disparar:


- o que houve? Fiquei preocupada com sua ligação, você nunca me liga... E ainda marca nesse lugar distante da minha casa, da sua, antes de meio dia. Te senti aflita no telefone, o que está acontecendo? - Maristela permaneceu em silêncio - Fala Maristela quer me matar do coração?

- Eu estou grávida - A frase veio seca, direta e reta.


(Longo silêncio)


- Eu não sei o que dizer...


(mais algum silêncio)


- A gente pode procurar o padre da minha paróquia, ele tem a mente muito aberta e é muito querido pelo bispo, de repente ele pode fazer contato com o papa...

- Que papa Adelaide, você tá maluca??

- Isso não pode ser normal!!! Que você se relacione com mulher tudo bem, mas engravidar é impossível, de repente você tá esperando o anti cristo, a gente precisa de ajuda...

- Não fala besteira, Adelaide. É claro que eu to grávida de um homem


(novo silêncio)


- Então aquele papo de ser lésbica era... Era tudo mentira???

- Claro que não


(mais uma vez... silêncio)


- Eu não entendo

- Sinceramente, eu não sei por que diabos te chamei... Eu tava bêbada, Adelaide... Tava muito louca numa festa e aconteceu. No mundo das boas esposas isso não acontece???

- Não


(Silêncio)


- Você não pretende abortar, né?

- Não sei, acho que não.

- O aborto...

- É o pior dos pecados!!! Eu sei, me lembro todos os dias do padre Pedro falando isso, tenho tido pesadelos constantes com ele e com aquela senhora que fazia aborto e foi apedrejada lá na cidade, lembra?

- Lembro... O papai acertou a pedra que bateu na cabeça dela.

- Eu sei.


(Silêncio)


- Pensei que você não acreditava em Deus.

- Eu não acredito.

- Mas...

- Não me torra, Adelaide


(silêncio Tenso)


- Mas você me chamou aqui pra que exatamente?

- Por que eu não posso me abrir pra ninguém do meu meio e eu não sei o que eu faço.

- Mas por que não pode se abrir?

- por que eles são todos gays, por que eu trabalho numa revista gay, num site gay, ouço música gay, freqüento lugares gays. Eu posso perder amigos, muito provavelmente vou perder trabalhos e meu livro nunca mais vai vender um exemplar.

- Nossa!!!

- Ser gay pra mim já foi uma opção sexual, passou a ser uma orientação e eu transformei numa obrigação.

- Caramba!!!


(Silêncio tenso ao quadrado)


- De repente é uma boa oportunidade pra você mudar de vida...

- Eu não quero mudar de vida...

- O Otacílio pode conseguir um emprego...

- Eu não quero um emprego conseguido pelo Otacílio...

- lá nas forças armadas...

- EU NÃO QUERO SER FUNCIONARIA DAS FORÇAS ARMADAS.


(silêncio muito tenso a décima potencia)


- E o pai?

- O que tem ele?

- O que ele acha?

- Não acha nada, ele não sabe.

- Não vai falar pra ele?

- É um porra loca, maconheiro. É melhor eu resolver sozinha.

- Ele abusou de você?

- Claro que não

- Mas ele te embebedou?

- Não

- Você que pagou a bebida?

- Não, foi ele. Mas é por que eu tava dura.

- então ele te embebedou.

- Não fala besteira

- Você gostou?

- Não

- Você queria?

- Não, ele meio que forçou a barra.

- Então ele abusou.

- Lógico que não, em que mundo você vive??? Ele só me encostou na parede e eu não soube dizer não.

- Pra mim ele abusou de você.

- Cala a boca, Adelaide.

- Acho que as pessoas não vão ser tão severas com você, já que foi um abuso, pelo contrario vão ser solidárias. Os homens são tão machistas, não conseguem ver que um mulher pode ter prazer sem eles. E de repente você pode até ter mais visibilidade no seu trabalho, quem sabe escrever outro livro... É tudo uma questão de ponto de vista.


(Silêncio filosófico,ético,estético,religioso,social/financeiro)


A conversa não durou muito mais, Maristela fez algumas ligações e contas, pediu um misto quente e um suco de laranja, conversou sobre enxoval e foi embora de táxi. Naquele dia de uma forma quase que mágica Maristela pela primeira vez concordou com a idéia de que tudo depende do ponto de vista e mais que isso entendeu a magnitude da frase, em algum momento ela finalmente teria que amadurecer... Ou não, é tudo uma questão de ponto de vista.

3 comentários:

  1. Ola gato! Primeira vez que leio uma de suas histórias! Aliás ja teve outras? DE qualquer modo achei muito interessante a fala da personagem gay quando ela diz que toda a vida dela foi construida no fato de ser gay e agora por está grávida supostamente tudo poderia sair mal. Foi meio que uma reversão de papéis no nosso meio. geralmente agente so fala e lê sobre nosso medo de perder amigos e arruinar nossa vida contando sobre sobre nossa homossexualidade! Bem, deixando esse momento divã de lado, achei legal esse antagonismo das personagens, bem diferente uma da outra, mas parece que no fim conseguem se ajudar, eu acho né...

    abração e boa semana!

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  2. Eu pensei em ser bem clichè, diante de minha "estupefação" pela lógica e coerência no texto, mesmo que em pontos aqui ou ali a lógica se desfaz nela mesma.
    Quase que me perdi... ou me perdi... dia confuso ontem. Algumas inquietações pessoais.
    Enfim, todo ponto de vista, é um ponto de vista, a partir de um ponto vista... não é?
    E vc tb abandonou a idéia do dia 30/10? Tenhu sentido uma certa indiferença geral. Acho que não consegui ser convincente o bastante. Mas a bem da verdade... sei lá... vamos ver, eu acredito em surpresas hauhuahuahuhau
    Bju e uma excelente semana
    Jay

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  3. Meu gato... só no seu blog para eu ler uma coisa tão maravilhosa... uma "histórinha" tão cheia de riquezas e de detalhes... O que não é ponto de vista, não é???

    E como é difícil observar as coisas pelos olhos dos outros (diria que impossível)...

    Bjus

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