3.1.23

Dandara




Eu o conheci quando ele tinha 16 anos, era um garoto inexperiente, no seu primeiro emprego formal quando eu já era uma referência naquele mesmo espaço. 

De cara tivemos boa afinidade, com meu olhar afiado sabia que era um adolescente enrustido e era muito solidário. Adolescente, evangélico, negro e com uma padrão de vida que sempre chamou muito minha atenção. Sabe o menino pobre que a igreja """adota""""? A criança que vive uma situação familiar precária e que as pessoas de bem da igreja levam generosamente para passar fins de semana na sua casa e depois devolvem para sua opressão regular? Pois é, é ele... Eu já vi esse filme e em geral nunca da bom.

O menino negro retinto dizia ter alergia a sol, sua pele coçava, seus amigos da igreja eram todos brancos e de classe média, padrão do padrão e tratavam ele "como se fosse da família". Aos 16 , diante do seu primeiro emprego saiu da fazenda da mãe, que na época tinha graves problemas com bebida e ainda vivia com o padrasto que abusou dele durante da infância. tendo um salário e apoio dos amigos da igreja foi morar sozinho numa quitinete no centro. 

Meu marido dizia que ele era sem noção, eu dizia que ele era completamente desorientado de tudo e tentava na medida do possível, ajuda-lo... E ele sempre me ouviu.. Emprestei livros, tive conversas... Viramos amigos. 

Ele viveu uma grande crise com os amigos da igreja, tudo começou no mesmo período que assumiu sua homossexualidade. Já não tão criança e gay, as portas começaram a se fechar e velhos amigos faziam chacota na internet. Lembro de um filho de pastor, rico, branco escrevendo no facebook que ele acusava a igreja de mentir, mas que no fim a mentira estava dentro dele, mas que quando precisasse ele iria voltar. A situação se tornou insustentável quando ele falou pra todo mundo que a mãe morreu, todos o abraçaram, inclusive eu, ele chegou a ser hospitalizado, levei pra minha casa e foi um pastor da igreja o primeiro a descobrir que na verdade ela estava viva.

A história da mãe morta foi um divisor de água, cada vez mais ele tava sem a tutela da igreja, fora do trabalho, o cerco foi se apertando. Ficou amigo de uma galera super progressista da universidade federal da minha cidade. Morou um tempo com amigos numa serra, virou bicho grilo, foi nessa época que passou a usar saias. A mentira da mãe tbm inaugurou muitas outras, vivia mentindo, contava mil histórias. Um dia bateu na minha porta vestido de mulher e disse que a partir daquele momento se chamava Dandara.

Eu acolhi, recebi, mas olha... Sei que era fácil pra qualquer psiquiatra falar em disforia, num contexto de muitas invenções, além disso nada anteriormente indicava essa transgeneridade, pelo menos nada aparente, ams eu fiz o que me restava, acolhi. Ser uma mulher trans preta, trouxe um lugar de notoriedade, visibilidade, a gata começou  a palestrar e qualquer coisa que dissesse recebia inúmeros aplausos. nessa época era o período das ocupações das escolas, ela morou em algumas, mesmo já não sendo secundarista.

Depois de um tempo foi embora pro Rio, dividiu apartamento com Black Blocs, passou a se prostituir, tatuou um "Puta" com A de anarquismo na bunda, passou a usar drogas pesadas, a participar de forma violenta de atos e por aí vai... Esse período é um período bem nebuloso da sua vida, por que a única vez que esteve aqui na cidade foi me ver e contou muitas mentiras absurdas... Falava que estava com HIV, câncer e alergia a todas as medicações menos antialérgico, que fizeram pelo menos 4 documentários com a sua história, que conhecia pessoas trans famosas o cenário musical... Nada fazia muito sentido.  Ela tinha 18 anos quando foi presa pela primeira vez, fugiu, chegou a  me ligar, me contar que tava vivendo com uma amiga, que batia carteira pra sobreviver. Se emocionou quando perguntei onde estava aquela pessoa com tantas ambições que eu conheci, que queria ir pra África ajudar pessoas, que queria salvar o mundo.

Meses depois soube que foi pega por policiais aqui na nossa cidade, pulou de uma ponte, estava com cocaína, voltou para cadeia. Me ligou da cadeia, me contava que não via a hora de sair... A ligação era péssima, tentei aconselhar como podia. Em 2020 ela saiu...Na verdade não era mais ela, era ele.. Voltou com a expressão masculina e usando nome masculino, dizia estar de saco cheio de ser alvo, que não suportava mais. Conversando com ele eu olhava um pouco espantado, o jeito, as gírias... Era outra pessoa. Ele contou que engravidou uma menina, que ela era prostitua, que o filho vivia largado e que ele tinha vontade de pegar. 

Ele voltou a morar com a mãe, já livre do álcool, mas vivia falando da dificuldade de se ressocializar, da falta de amigos, do fato de ninguém dá uma oportunidade, da vontade de fazer merda, do medo que tava de ir mensalmente no Rio assinar documento na casa de detenção e ficar. A mãe do seu filho vivia chamando pra ele ir pra lá, eles se prostituiam juntos.... A vida sexual da cadeia tbm deixou suas marcas, sentia falta da alta rotatividade e da variedades de homens. Encaminhei ele pro CREAS e tentei fortalecer o máximo que podia para não cair. 

Algum tempo depois ele conseguiu emprego de frentista num posto de gasolina, alugou uma quitinete, para morar próximo por que ficava num lugar um pouco ermo. Foi tomando gosto pela casa, por ter suas coisas... Reclamava apenas da solidão.... Queria namorar alguém, tinha vergonha do mamilo que cresceu em função de hormônio, sabia que além de preto e pobre carregava consigo o passado, isso com apenas 24 anos. As vezes fazia um programa, volta e meia se via tentado a fazer besteira, mas se manteve firme. Não retornou a igreja, mas resgatou um contato com a fé o que ajudou bastante. 

Depois de um tempo conseguiu um emprego de frentista na baixada através de uma prima... Alugou uma casa melhor, organizou seu espaço, comprou um notebook, fez vestibular para CEDERJ, está tirando carteira de motorista e por causa de uma bobagem acabou de ser demitido. Me ligou essa semana, ficamos um tempo no telefone, saiu do emprego anterior deixando portas abertas, discuti com eles estratégias para gerir o dinheiro da rescisão, terminar autoescola, retornar pra sua cidade e continuar nesse caminho. Ele tá sereno e eu fico aliviado, só me preocupando com essa solidão... Com os homens pseudo heteros que ele se dispõe a ficar, que leva pra tento de casa, que colocam ele numa situação de risco. Tenho medo do quanto o sistema carcerário ainda está dentro dele, embora ele esteja fora, mas nunca deixei de apostar nesse que um dia atribuiu a si a força de Dandara. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário