8.9.24

Sobre amor, racismo e redes de apoio!

 

Eu acredito no amor e sei lá que tom essa frase pode ter em 2024, quando eu era mais novo acho que teria um tom cafona, hoje acho que soa apenas inocente, mas realmente acredito. Todavia acho importante deixar claro que acredito no amor numa perspectiva Paulo Freiriana, não tô falando do amor romântico fortemente construído pela cultura de massa, esse amor que sustenta o patriarcado, o machismo e várias outras opressões. Eu estou falando sobre o amor que motiva pessoas, enaltece, que faz com que gente que se ama se apoie e avance, cresçam enquanto pessoas, tô falando do amor que Paulo Freire apresenta com tanta habilidade na pedagogia do amor, do amor que me faz pensar no sentido da vida mesmo, que me faz entender que estamos aqui pelo laços que construímos.

Talvez acreditar nisso tenha a ver comigo viver uma história de amor há pelo menos 15 anos, tempo pra bastante coisa. E como uma história de amor, ancorada na realidade, esse sentimento não se manteve intacto de uma forma horizontal desde o primeiro dia, claro que não. Existem momento de dúvida, de questionamentos... Houveram vários momentos que eu me perguntei "será que é isso mesmo?", mas por uma série de bons motivo, bem palpáveis e materiais, já faz um bom tempo que eu tenho absoluta certeza que é. Um deles é o mais proeminente e é o que vou compartilhar aqui com vocês.

Quando conheci meu marido ele trabalhava num call center. O boy vem de uma família humilde a mãe uma mulher negra retinta que estou apenas até o primário, trabalhou e trabalha até hoje como empregada doméstica. Em alguns momentos com faxina, outros como babá e já tem alguns ano como cuidadora de idosos, mas sempre na esfera doméstica. Ele terminou o ensino médio fazendo EJA numa escola pública, logo que terminou trabalhou alguns meses numa fábrica de refrigerantes, até cair num call center. Quando me conheceu, após um ano e meio namorando a distância optou por vir morar onde eu trabalhava e foi trabalhar na boate de um amigo. Na época eu n tinha a menor ideia de que eu estava casando, achava que ele vivia de uma forma tão desassistida pela sua família que perto de mim talvez vivesse melhor, hoje com a cabeça que tenho entendo a  dimensão do passo que estava sendo dado e se entendesse na época certamente não daria, ainda bem que não entendia. 

Ele não levou muito tempo na boate, logo depois foi pra call center de novo, trabalhou como vigia e seguiu em outros sub empregos, certa vez numa visita da sua família aqui falou pra sua cunhada que queria fazer faculdade por que todo mundo na minha família tinha faculdade, ela perguntou sobre os meus amigos e ele respondeu "todos em volta dele tem faculdade", então ela disse que ele deveria fazer mesmo.

Eu nunca coloquei essa pressão, acho que faculdade é daquele tipo de coisa que dá muito mais valor quem não tem. Eu acho importante o sujeito se tornar um adulto funcional, alguém que é capaz minimamente de cuidar de si mesmo e do espaço em que vive. Nesse pacote inclui você se sustentar, do básico até seus pequenos luxos. Sustentar-se tem a ver com monetizar, mas monetizar não significa necessariamente ter ensino superior. Não que eu não valorize a educação e não ache um caminho importante das possibilidades de ascensão de um menino pobre, mas também sei que há muito fetiche em cima disso e que ter um faculdade não é sinônimo de sucesso, tá cheio de gente que tem uma faculdade e que não deu certo na sua vida profissional e cheio de gente que não tem e deu, há outros fatores. Porém isso é o que eu penso, não era o que ele pensava ou valorizava naquele momento e ele fez o que ele quis.

Partiu tudo dele, entrou num pré vestibular social, estudou um ano, passou no vestibular e viveu o desafio de, enquanto um rapaz pobre, começar uma faculdade pública e integral com 25 anos, ou seja, ele teria que parar de trabalhar. A mãe trabalhava como babá em tempo integral de sexta a domingo, passou a pegar uma faxina  em dias de quarta pra mandar um dinheiro pra ele, o pai também mandava, eu sustentava as contas da casa e assim fomos levando. Cinco anos é tempo pra muita coisa, foram várias reviravoltas financeiras que me fez em muitos momento pensar que ele teria de trancar, mas fomos até o fim.

Eu não sei se você que está me lendo já viveu a experiência de tentar falar pra um menino pobre, negro e periférico que um espaço tão elitizado como é a universidade pública também pertence  ele. Não é fácil, existe uma coisa chamada "síndrome do escravo", quando vc é criado sendo apresentando a um único horizonte, sem nenhuma referencia diferente pra se espelhar o caminho normal é você entender que é o que te resta. Você pode até se imaginar "Doutor", mas você imagina igual a gente fica imaginando o que faria se ganhasse na loto... É um lugar bem distante! Acho que foi a partir de mim que ele teve uma referência e todos se juntaram numa força tarefa pra faze-lo a primeira pessoa com ensino superior da sua família.

É importante destacar que eu não venho de uma família rica, eu também fui um menino pobre, preto e periférico, porém eu venho de uma família de classe média e sobretudo de uma família de educadores. Muitas professoras que valorizavam e apostavam na educação, o que me fez estudar nas escolas mais caras da minha cidade, sempre com muito sacrifício, eu convivia no meu bairro com menino como eu e na escola com pessoas de outras realidades. Ainda que eles fossem diferentes de mim em muitos aspectos, imbuído nessa realidade eu segui todo protocolo educacional, nunca tive dúvida que faria uma faculdade. O curso que eu queria não havia pública na minha cidade e minha família não teria grana pra me manter numa capital, na época eu e minha mãe entendemos que o melhor era eu fazer uma particular aqui e ela se comprometeu que daqui, até eu terminar meu ensino superior eu não precisaria trabalhar, podendo me dedicar completamente aos meus estudos, como de fato eu fiz.  Meu pais dividiam a prestação da faculdade, eu morava com os meus avós que ajudavam com as minhas despesas e fui assim até o fim. 

Quando entrou na faculdade pública o meu marido me incentivava a retornar a estudar, a tentar um mestrado, um doutorado, ele dizia que aquele ambiente tinha tudo a ver comigo, mas eu tinha certeza que não era pra mim. Basicamente por que desde que me formei, pra ter o mínimo eu sempre trabalhei muito. Dois, as vezes três empregos, como conseguiria suportar a rebordose de uma universidade pública? Ele terminou a faculdade dele em 2020, pandemia, tava complicado trabalhar, algum tempo depois ingressou no mestrado, muito em função da bolsa. No fim de 22 eu perdi um emprego e foi nessa deixa que ele me incentivou a tentar fazer um mestrado profissional. Ele estudou inglês comigo, me ajudou a olhar o currículo dos professores, me orientou como fazer um pré projeto... Eu passei. 

De lá pra cá tem sido só pedrada, conciliar a faculdade e dois empregos em cidades diferentes, tava pesado. Meu carro velho, deu vários problemas, perdi aulas importantes, achei que perderia semestre, meu pai pagou um concerto caro uma vez, minha mãe me ajudou a trocar de carro no meio do processor. Luta... Luta atrás de luta.

Dentro da faculdade eu descobri que ele não estava errado quando achava que a faculdade não era pra ele, nem eu estava errado quando achava que não era pra mim. Não é mesmo! A universidade pública, os ensinos superiores e de pós graduação, não são feitos para pessoas de origem preta e periférica, o que faz com que nós nos mantenhamos lá é o amor de quem quer que a gente cresça. Minha mãe, meu pai, meu marido, os pais dele, meus avós, nossos amigos, sem eles seriam impossível. E é por isso que eu acredito no amor, no amor revolucionário de Paulo Freire, no amor que é tão grande, mas tão grande que rompe a barreira monstruosa do racismo estrutural e a crueldade da diferença de classe desse país. É isso que eu chamo de amor, quando eu digo todos dias "eu te amo" para o meu marido. 

Trevante Rhodes e André Holland em “Moonlight.” (Imagem: Cena do Filme/ Reprodução)



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